quinta-feira, novembro 28, 2019

A relativização ali ao lado

A Joacine despertou o tal debate que nunca foi público por cá: o racismo estrutural existe, mesmo que a palavra "estrutural" não seja muito boa a fazer a vez de "desde sempre e até hoje". Infelizmente o ruído à volta do debate é tanto que é complicado manter isto num nível só. Parece que há que partir isto em dois debates distintos, um mais imediato, onde se desmontam as coisas que não existem senão em conversas de café, o preto preguiçoso ou o preto que volta para a sua terra, e outro abaixo deste, onde se percebem as origens desta conversa de café. Até lá, continuaremos a ter até cerca de 10 níveis de debate, dependendo da vontade de esmiuçar a vida da Joacine, se mete açúcar no café, se é gaga de proposito, o que realmente disse até hoje, se é realmente de esquerda ou se tem ascendente em Sagitário. 

quarta-feira, novembro 27, 2019

O fosso

Num mundo em que toda a gente acha que deve ser criativa, um fosso separa as duas reacções possíveis. De um lado, os humildes e pré-visionários que acham que não têm nada para dizer, porque acham que ser criativo é ser hiperbólico, mágico, indecifrável. Do outro, os visionários, que entendem que qualquer ideia hiperbólica e indecifrável é mágica. No meio desses, 2 ou 3 que realmente fazem magia.
Quando radicalmente optamos por não dizer nada, esse silêncio é tido como ausência. Um convite a encher o mundo de ideias de merda, só porque não há melhores. A criatividade dos outros é o inferno.

terça-feira, novembro 19, 2019

Stream of conciousness, portuguese edition

Já não se fazem coisas assim.

FMI - José Mário Branco

Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos...
É o internacionalismo monetário!

FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu 'attaché-case' sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico harakiri
FMI Panegírico pró lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI ...

Entretem-te filho, entretem-te,
não desfolhes em vão este malmequer que
bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca,
vem-te bem, bem te vim,
vim na cozinha, vim na casa-de-banho,
vim-me no Politeama, vim-me no Águia D'ouro, vim-me em toda a parte,
vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão,
olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora,
olha a música no coração da Indira Gandhi,
olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d'olho,
o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
nós somos um povo de respeitinho muito lindo,
saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?

Consolida filho, consolida,
enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde.

Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo,
o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos,
com'ò Astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar,
para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!

E estás aí a olhar para mim, estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto,
pagaste o teu bilhete,
pagaste o teu imposto de transacção
e estás a pensar lá com os teus zodíacos: "Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?" né filho?

Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
Aniki-bé-bé, aniki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor,
pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!

Entretem-te filho, entretem-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho,
trabalhinho, porreirinho da Silva,
e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?

A-one, a-two, a-one-two-three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Camòniú sanòvabiche! Camóne beibi a ver se me comes!
Camóne Luís Vaz, amanda-lhe co'os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas!
E zás! enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares,
zás! enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal,
zás! enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro,
zás! enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros,
zás! enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen,
ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu,
um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho?
Pois, irreversível, pois claro, irreversívelzinho,
pluralismo a dar com um pau,
nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho?
Olha que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá,
é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é?

Preocupações, crises políticas pá?
A culpa é dos partidos pá!
Esta merda dos partidos é que divide a malta pá,
pois pá, é só paleio pá, o pessoal não quer é trabalhar pá!
Razão tem o Jaime Neves pá!
(Olha deixaste cair as chaves do carro!)
Pois pá!
(Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?)
É pá, deixa-te disso, não desestabilizes pá!
Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata.
Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril,
esta confusão pá,
a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa...
Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carago,
mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá,
meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá,
isto é tudo a mesma carneirada!

Oh sr. guarda venha cá - á,
venha ver o que isto é - é,
o barulho que vai aqui - i,
o neto a bater na avó - ó,
deu-lhe um pontapé no cu, né filho?

Tu vais conversando, conversando,
que ao menos agora pode-se falar...
...ou já não se pode?
Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah?
Estás desiludido com as promessas de Abril, né?
As conquistas de Abril!
Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho?
E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, "não é nada comigo, não é nada comigo", né?
E os da frente que se lixem...
E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada,
precisas de paz de consciência,
não andas aqui a brincar, né filho?
Precisas de ter razão,
precisas de atirar as culpas para cima de alguém
e atiras as culpas para os da frente,
para os do 25 de Abril,
para os do 28 de Setembro,
para os do 11 de Março,
para os do 25 de Novembro, para os do...
... que dia é hoje, hã?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI ...

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho?
"Todos temos culpas no cartório", foi isso que te ensinaram, não é verdade?
Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande. Tenho dito.
A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade?
Quer-se dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular!
Somos todos muita bons no fundo, né?
Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas,
estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá,
as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole
e o Zé é que se lixa,
cá o pintas é sempre mexilhão...

Eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto,
viva o Porto, viva o Benfica,
Lourosa! Lourosa!
Marrazes! Marrazes!
Fora o arbitro! gatuno! Qual gatuno, qual caralho!

Razão tinha o Tonico Bastos para se entreter, né filho?
Entretem-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores,
entretem-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais,
entretem-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho,
entretem-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar,
entretem-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes,
entretém-te, filho,
e vai para a cama descansado
que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante,
enquanto tu adormeces a não pensar em nada,
milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos
com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar da tua vida com o Jimmy Carter,
o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II,
tudo corre bem,
a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas.
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias,
ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Muel
que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!

Vão-te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho?
Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer:
- votas à esquerda moderada nas sindicais,
- votas no centro moderado nas deputais,
- e votas na direita moderada nas presidenciais!
Que mais querem eles? que lhes ofereças a Europa no natal?!
Era o que faltava!

É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes?
toma, para safado, safado e meio, né filho? nem para a frente nem para trás!
e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né?
Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega.

Entretem-te meu anjinho, entretem-te,
que eles são inteligentes,
eles ajudam,
eles emprestam,
eles decidem por ti,
decidem tudo por ti:
- se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia,
- se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão,
descansa que eles tratam disso,
- se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!

Descansa, não penses em mais nada,
que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar!

Descontrai baby, come on descontrai,
afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa
e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!

Piramiza filho, piramiza,
antes que os chatos fujam todos para o Egipto,
que assim é que tu te fazes um homenzinho
e até já pagas multa se não fores ao recenseamento.
Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!

Dá-lhe no Travolta,
dá-lhe no discossáunde,
dá-lhe no pop-chula,
pop-chula pop-chula,
yeah yeah, jo-ta-pi-men-ta-for-e-ver!

Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti!
Não te chega para o bife? - antes no talho do que na farmácia!
Não te chega para a farmácia? - antes na farmácia do que no tribunal!
Não te chega para o tribunal? - antes a multa do que a morte!
Não te chega para o cangalheiro? - antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir,
cabrões de vindouros!

Hã? Sempre a merda do futuro! E eu que me quilhe!
Pois, pá!
Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?
Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos,
isto é que é uma porra!
anda aqui um gajo cheio de boas intenções,
a pregar aos peixinhos,
a arriscar o pêlo,
e depois?
É só porrada e mal-viver, é?
"O menino é mal criado", "o menino é pequeno-burguês", "o menino pertence a uma classe sem futuro histórico"...

Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz, porra,
quero ser feliz agora,
que se foda o futuro,
que se foda o progresso,
mais vale só do que mal acompanhado!

Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!

Deixem-me em paz, porra,
deixem-me em paz e sossego,
não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho,
não há paciência, não há paciência,
deixem-me em paz caralho,
saiam daqui,
deixem-me sozinho só um minuto,
vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta!

Deixem-me sozinho, filhos da puta,
deixem só um bocadinho,
deixem-me só para sempre,
tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega,
sossego porra, silêncio porra,
deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só,
deixem-me morrer descansado.

Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado,
eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto,
eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa,
deixem-me só porra!
rua!
larguem-me!
desòpila o fígado,
arreda!
t'arrenego Satanás!
filhos da puta!

Eu quero morrer sozinho ouviram?
Eu quero morrer,
eu quero que se foda o FMI,
eu quero lá saber do FMI,
eu quero que o FMI se foda,
eu quero lá saber que o FMI me foda a mim,
eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI,
o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões,
o FMI não existe,
o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma,
o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio,
rua!
desandem daqui para fora!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!

oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe...

(...)
Mãe, eu quero ficar sozinho...
Mãe, não quero pensar mais...
Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer,
ir-me embora, sem sequer ter de me ir embora.
Mãe, por favor!
Tudo menos a casa em vez de mim,
útero maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo...
de quê mãe?

Diz, são coisas que se me perguntem?

Não pode haver razão para tanto sofrimento.

E se inventássemos o mar de volta?
E se inventássemos partir, para regressar?
Partir, e aí, nessa viajem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste.
Partida para ganhar,
partida de acordar, abrir os olhos,
numa ânsia colectiva de tudo fecundar,
terra, mar, mãe...

Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto,
lembrar - nota a nota - o canto das sereias,
lembrar o "depois do adeus",
e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal,
lembrar cada lágrima,
cada abraço,
cada morte,
cada traição,
partir aqui,
com a ciência toda do passado,
partir, aqui, para ficar...

Assim mesmo,
como entrevi um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o azul dos operários da Lisnave a desfilar,
gritando ódio apenas ao vazio,
exército de amor e capacetes.

Assim mesmo, na Praça de Londres, o soldado lhes falou:
- Olá camaradas, somos trabalhadores, e eles não conseguiram fazer-nos esquecer; aqui está a minha arma para vos servir.

Assim mesmo,
por trás das colinas onde o verde está à espera,
se levantam antiquíssimos rumores,
as festas e os suores,
os bombos de Lavacolhos,
assim mesmo senti um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
- De quem é o carvalhal?
- É nosso!

Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei.
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena.

Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe.
No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco.
Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos,
o meu canto e a palavra.
O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram.
A minha arte é estar aqui convosco
e ser-vos alimento e companhia
na viagem para estar aqui
de vez.

Sou português,
pequeno-burguês de origem,
filho de professores primários,
artista de variedades,
compositor popular,
aprendiz de feiticeiro.
Faltam-me dentes.

Sou o Zé Mário Branco,
37 anos, do Porto,
muito mais vivo que morto.

Contai com isto de mim
para cantar e para o resto.

Nota: FMI foi editado originalmente em 1982 no maxi Som 5051106, e reeditado em 1996 em 'Ser Solidário' (EMI-Valentim de Carvalho).



segunda-feira, novembro 18, 2019

Alto lá

Como podem ver, este estaminé está ininterruptamente em funcionamento desde 2006. A qualidade tem vindo a descair, a quantidade também tem vindo a descair, mas eu tou aqui, de pedra e cal.

quarta-feira, novembro 13, 2019

Por exemplo

Um post de uma passagem de modelos, com um homem de barba rija a usar um vestido. Obviamente um ataque ao patriarc... Estou a gozar, não é um ataque a nada. É só um gajo de vestido.
Mas vejo-o a ser usado contra "o gajo do PAN". E é assim que se ganham eleições hoje. Tudo o que é preciso é fazer ruido que ofusque todas as outras mensagens.

Cuidado com as aparências 3

Cuidado já dizia o Casimiro. A sabedoria taxista, no seu saber mais profundo e instintivo, sempre foi como o Casimiro e soube a verdade. Eles são todos iguais devia ser ensinado nas escolas.

Cuidado com as aparências 2

Cuidado com as aparências cuidado. Especialmente aquela conversa de encher chouriço mas embrulhada de indignação, que faz a conversa parecer chouriço a sério.
Não falo da que vem do pessoal do lado de lá, porque isso do pessoal do lado de lá não existe. É mesmo naquele em que votaram.

Cuidado com as aparências

Cuidado Casimiro, dizia o Sérgio Godinho. O pessoal que acha que a musica não era sobre toda a gente está a deixar-se embarretar por uma cantiga nova que soa ao mesmo, só que não.

quinta-feira, novembro 07, 2019

Novembro, 7

Ainda vejo pessoas a partilhar textos e memes sobre a saia do assistente da outra.

domingo, novembro 03, 2019

Era preciso era 2 Joacines

Isto vai andar agitado (fora do twitter dúvido) e nunca mais vai voltar ao mesmo, mas é preciso.
A alternativa é continuar a ouvir gente a dizer que não há racismo, que está tudo bem e continuar a dar espaço ao Ventur* para dizer barbaridades que nem ele acredita.