terça-feira, dezembro 26, 2023

Um conto de Natal

Dimitri já deixou a Ucrania há muitos anos, apesar do sotaque cerrado parecer o de quem acabou de chegar. Mais de vinte, conta-me pelo retrovisor. Tem saudades da neve e do frio. Diz que Portugal não é bom nisso, fica frio mas sem neve, a única vantagem de haver frio. Com neve, até vinte graus negativos são melhores que os nosso três, quatro graus, vai dizendo. Fica muito entusiasmado quando descreve a neve, deve viver muito o momento de a voltar a ver. Fala da guerra e como vai regressar quando ela acabar. Para ajudar a reconstruir o país. Pelo caminho vai pintando várias vezes a paisagem da Ucrania, florestas cobertas de neve, noites de lua cheia em que a neve deixa a terra iluminada. Conta como tem saudades da sua familia e dos seus amigos e como são as noites de natal na sua terra, que são quase iguais às minhas: na aldeia, sai-se de casa depois da ceia e vai-se de casa em casa, visitando a familia toda, os tios, os primos, os amigos. Pára-se para comer e beber e acabam todos juntos numa casa qualquer, a cantar e a beber. Cá não se canta, não somos assim. Mas de resto, em tudo eramos iguais. Pelo meio, conta-me dos drogados. Odeia drogados. Mas conta, de tempos a tempos de os levar aos dealers. Trabalho é trabalho. Conta-me do casal da semana passada, que foi comprar crack à Amadora. Ele vê e ouve tudo pelo retrovisor. Já viu muita coisa. Diz-me que os dealers e os drogados, era abrir um buraco e metê-los lá dentro. "Têm problemas? eu entendo. Bebam! beber chega bem" - diz-me virado para tras no banco da frente. Continua a história: quando saiam do bairro do dealer, a polícia estava à espera deles. Avisou-os de que iam ser parados. "A polícia já sabe quem são e que vão fazer àquele bairro. Só não apanham os grandes" - com isto faz um gesto de galões no ombro, repete-o várias vezes para que entenda. São parados e revistados. A polícia não encontra nada, nem neles nem no taxi. Dimitri desafia-me a adivinhar onde esconderam o crack. Não me deu tempo de responder: "meteu a droga na cona!". Disse "cona" demasiadas vezes, pode dizer-se. Tinha quase o entusiasmo de quem vê neve pela primeira vez. Quando saí, desejou-me bom natal para mim e para a família, num tom sentido.
Num taxi, é assim o espírito do Natal.