domingo, setembro 28, 2014

Chamem-lhe arquétipo

Acabou-se o sossego. No dia em que subi a escada do prédio e encontrei o chão cheio de lixo na direcção e até à porta do vizinho do lado, verbalizei um conjunto alargado de experiências, conceitos e pensamentos numa uma única palavra: Foda-se. Ainda dei um dia, na esperança que fosse gente que como eu, que é importante e que tem mais que fazer, mas que acabaria por varrer a escada.

Não. No dia seguinte, confirmei. Pessoal das barracas, só pode. O pessoal-das-barracas não é pobre, nem vive em barracas, nem é de uma raça nem estrato social específico, é o termo para gente que acha que é muito complexo viver em sociedade. Até sei como é: Vivi com pessoal-das-barracas como vizinhos de baixo uns anos. Foi o mais próximo possível de viver com um episódio da casa dos segredos ao vivo:
Tudo era muito complicado e a interacção é intelectualmente sempre ao nível do jardim-escola. Barulho na escada? o míudo é pequeno, não tem culpa. Lixo atirado da janela? sem resposta. Berraria em casa? sem resposta. Atrasos a pagar o condomínio? a vida está cara e eu não sou rico. As janelas deixam passar vento? Este prédio é uma merda, não pago. A vizinha queixa-se? Deve ser inveja. O vizinho não tem medo de sair à rua à noite? Eu tranco-me em casa a correr quando venho da rua. Sim, em todo o lado há dragões. Tudo muito complicado, porque o pessoal-das-barracas vive uma realidade medieval em que é perseguido de todos os lados. E é verdade. Se tivesse toda a gente a apontar-me defeitos, também me cansava. Mas depois contemplava a hipótese de ter de, vá lá, dar o braço a torcer e aprender a viver com mais primatas.

Há bocado ouvi uns berros em dialecto burgesso do lado de lá da parede da sala. Acabou-se o sossego.

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