Janela entreaberta, o relógio aponta o tempo. Plano estático e ortogonal de um sofá.
Estava em conversa comigo mesmo, solilóquios dizem os poetas, e dei por mim a descobrir algo estranho. Fraquejava no pensar, enrolava-me nisto às voltas, sem saber como descrever a sensação. Acho que.... Senti ao de leve uma emoção.
Mau! tás a passar-te, caralho? não tens tempo para essas coisas. Lá para 2012 ainda vai, mas agora??
Mas a coisa não me largou. Mais voltas deu na minha cabeça, afirmou-se e tive de reconhecer, fechando o solilóquio em gargalhada: um momento de fraqueza. Ao fim de tantos anos, é estranho.
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Manteve-se no meu pensamento durante horas. Fixação cerrada. rangi os dentes com tanta força quanta tinha. «ah desgraçado, que hás-de sair, nem que seja a ferros». Deâmbulei pela sala com as mãos entre a cabeça, ao som dessa maldita passagem de Für Elise que o Zé Carlos, do andar de cima, teima em martelar no piano só para me atazanar.
Virando a cabeça e interrompendo o movimento com o fim do plano, em corte abrupto, olha para lá para fora, em vão tentanndo acalmar o espírito. Insere-se uma voz off que explica o que lhe vai na cabeça e enquadra-se um gato branco em segundo plano, fora de foco.
E se eu pudesse saltar? Abria a janela, deixava que o sol me cegasse e deixava-me ir sem mais pensamento algum.
Seria uma sensação, por fim, libertadora.
Livre das caras medonhas do pai e da mãe, bem coladinhas a mim, desfocadas, grotescas, a surgirem-me em flash no pensamento e a murmurarem sempre as mesmas frases, as mesmas palavras, os mesmos argumentos.
«ah! se eu pudesse saltar».
E o Zé Carlos que insistia a martelar o e/D e/D e/b/d..., acompanhado agora pelo impromptu miado do gato branco.
Em contrapicado e em contraluz, um homem na rua olha para a janela onde se adivinha uma presença. O fumo do cigarro que fuma enrola-se à volta do corpo e encerra-o como volume. Dá mais um bafo e começa a andar, saindo de campo.
, enquanto eu continuo a martelar ideias suicidas de forma estupidamente luminosa.
E o homem do cigarro mostra-se tão indiferente ao que o rodeia. Só existem dois no seu mundo: ele e o fumo que puxa avidamente do cigarro, muito provavelmente um SG Ventil acabado de comprar no quiosque do fundo da praça, onde compro os jornais todas as manhãs. Ainda assim, haveria de jurar que já me cruzei com aquele vulto, não no quiosque, não da vista da janela para baixo, não em algures. Talvez num sonho. Uma sombra, mais uma.
devagar e em movimentos longos e seguros, arruma os cigarros lendo o rótulo, alheio ao resto e como se os visse pela primeira vez. Perde-se nisto, enquanto faz tempo a que se dê um acaso qualquer, já esperado pela tensão criada pelo plano descentrado. No fundo à esquerda, uma estrada com carros a passar. À direita os plátanos sem folhas definem o fim do plano.
(Pausa para explicar que o narrador muda de plano e de diegése.)
Seguímos o homem até casa, enquanto o eu participante se decide sentar no sofá com a cabeça entre as mãos, olhos fechados e um fio de saliva a cair-lhe da boca como se fosse um menino pequeno, atormentado.
Novamente o focamos, não este, o outro que seguímos.
Segue pela rua mais estreita da avenida e ao cruzar os semáforos, pára, pensativo, antes de se decidir a entrar na casa com o número 33.
Plano por cima do ombro, a ver-se o sobretudo verde escuro à esquerda , a mão sobe aos botões da entrada com a patine do tempo. Cada botão de porta está anotado e foi colocado em tempo próprio. Desde a última vez que aqui esteve, alguns botões mudaram, a pausa para tocar agora é maior com a confusão de formas inesperadas. Toca no botão certo, o 2º. 3 vezes, firme.
A cabeça ergue-se de entre as mãos, ainda a ouvir-se o 3º toque de campainha. O tapete que está ao centro da sala é atravessado em 2
passos, um padrão estranho à casa.
Lentamente, do negro da porta da sala virada para o hall - de luz apagada - surgem as duas figuras.
rafael arregalou os olhitos tristes e esperou que o pai lhe afagasse os caracois degrenhados. esqueci-me novamente da chave, terá dito ao tentar beijar a boca daquela que se acaba de se afastar, rejeitando o beijo, rejeitando o cheiro e entrando na cozinha. É sempre mais do mesmo, não sei porque insistes em voltar?aposto que vens bêbedo como de costume!Conseguiste a merda do emprego, ao menos?
Tantas perguntas num tão curto espaço de tempo. Tantas exigências. Carinho pouco. O homem procurou os olhos do menino que tentava, em vão, esconder o corpo frágil atrás da porta da cozinha.
O turquesa deslavado dos cobertores do armário contrasta com o cabelo ruivo do miudo.
Olha em volta, com a discussão agora renovada a decorrer entre a porta da cozinha e a da sala, luz e penumbra. Ele tenta chegar à cozinha, ela tranca o corpo com a mão na anca e a porta com o corpo de mão na anca.
Rafael tapa os ouvidos e corre para o quarto. É difícil imaginar que pensamentos se constróem de forma bem articulada na cabeça deste petiz. O certo é que entra no quarto, deita-se na cama ainda por fazer e tapa-se por completo com os lençóis de flanela. Do meio da almofada puxa um carrito de bombeiros que roubou ao vizinho do 1ºD. Olha o carro e murmura «vrum,vrum, vruuuuuuum, hihihihih».
Capitolina
Janela de cortinados inundados de luz, à esquerda do plano. Cama ao centro, em diagonal. Brinquedos por todo o lado
Abafada pelo intrincado do corredor ou pelos cobertores, a discussão entre os dois continua, enquanto Rafael, no andar-de-baixo do beliche colorido, continua a ladainha, o seu corpo pequeno em movimento debaixo da coberta, como debaixo da terra.
O crescendo da discussão é interrompido por uma porta a bater.
Elipse.
As pernas magras entram à direita da cena, param antes do amontoado de brinquedos espalhado como minas no chão.
- Podes sair Rafael.
Já não gostas dele, mãe?. E a mãe não responde. Dirige-se a passos largos para a sala. Rafael haverá de encontrá-la sentada no velho sofá. Já não gostas do pai, mamã?. Judite tenta não responder ao filho. Vem, dá-me um abraço. Rafael abraça-a. Os adultos são complicados, filhote. Tudo vai ficar bem, vais ver.
Já não gostas dele, mãe?
Tu gostas?, pergunta-lhe ela. Gosto. Eu também, tonto... eu também.
( fadeout para negro, à laia de tele-filme )
O castelo de lego ao fundo do quarto de Rafael ganhou proporções respeitáveis - sempre esteve lá, mas a história não precisava dele até agora. Torres de peças amontoam-se ao fundo do quarto. A câmara segue a cabeça morena até ao castelo. Pausa. Aos poucos, Rafael desmonta o castelo enquanto murmura uma musica qualquer. O gato e a mãe entram em cena, lentamente e em simultâneo. A ma~e pergunta-lhe distraída enquanto faz a cama - "o que vais inventar agora, Rafael?" - e dá a volta a almofada. O gato ondula curioso à volta do miúdo, a tentar perceber a nova condição do castelo.
tower bridge is falling down, falling down, falling down. tower bridge is falling down, my fair lady.
era esta a música que rafael trauteava, não a cançoneta inglesa, mas uma homónima qualquer portuguesa que terá aprendido no jardim infantil.
uma torre. vou construir uma torre até ao céu. e desta vez não há-de cair.
mudança de plano, de cenário, de actores.
o zé carlos acabou de martelar no piano. levanto-me lentamente. alguma coisa tem que ser feita.
Frente ao espelho, cabelo curto e revolto, uma linha negra debaixo dos olhos.
Fixa-se, à procura de um sinal para avançar. Tapa a boca com a mão, para calar o que não quer dizer. Já tomou uma decisão, olha em volta para certificar-se que ninguém viu este momento.
Puxa os collants e ajeita o vestido. rafael despacha-te, vais ficar com a dona rosa!
outra vez?, resmungou
outra vez e não há cá funfuns nem funfetas! Despacha-te, vá que tenho que fazer...
É melhor ir arejar as ideias. Encharcar-me de analgésicos, paroxetina e Beethoven não se mostra lá muito eficaz. Pego na chaves do carro e bato a porta. Com o barulho, o gato salta do parapeito da janela.
Passo decidido pela rua, olhar em frente, sem pestanejar. Rafael tem de correr para acompanhar a passada
"o que tens mãe?"
Entra no carro, mala no banco do lado, arranca. Rafael no banco de trás, a queixar-se dos bonecos do happy meal fora de alcance. "agora não Rafael"
O transito obriga-a a andar mais devagar do que queria. Tem de atravessar a cidade toda e todos os camiões de mudanças e superbocks, taxis e bicicletas metem-se-lhe no caminho.
"oh que foda-se..."
Pega no telemóvel e liga-lhe, no 4º sinal vermelho "Ainda estás por casa? vou aí levar o Rafael. obrigado. depois conto. nada. o costume. depois conto."
«A mamã adora-te, nunca te esqueças disso», foi assim que ela se despediu de rafael.
O miúdo atalhou cabisbaixo pelo corredor sombrio. A dona rosa adivinhou-lhe o pensamento, não te preocupes, ele fica bem.
E entre algumas explicações, voltou: o do costume, pois... e achas que consegues? arranjar tanto dinheiro, assim num dia?
Que conseguia, que tinha que conseguir, desse lá por onde desse. Mas seria a última vez, iria ver, a última.
«onde é que eu já ouvi isso?», suspirou dona rosa fechando-lhe a porta e ouvindo-a galgar as escadas.
em crescendo, o corpo ganha ímpeto, velocidade, estrica. Abre a porta do carro de rompante, entra, marcha-a-rá agressiva. Sai do trânsito com manobras de taxista, acelera. As placas indicam a auto-estrada. Atravessa o rio.
Plano picado.
Carro branco ao centro do plano, ponte vermelha sobre o rio mais cinzento que azul.
travelling lateral, seguindo o pequeno carro branco ao longo da estrada, sempre no mesmo ponto central do plano. elipses várias, mostrando o passar dos km's.
Banda sonora a condizer: 3 de segundos de notícias, 4 segundos de rock fm, 2 segundos de orbital, silêncio.
Saida da autoestrada. Estrada ao centro, terra batida, tunel de canas e canavial que antecede a lagoa. O carro avança sobre a camara, ignorando os buracos e solavancos.
Céu, ruído do carro como fundo. Pára.
Contra outro céu, duas personagens entram no enquadramento em contra picado. "Não fazia ideia que estavas aqui. Ia agora ter contigo, precisava de estar aqui um bocado. Esquece."
- Pois. Trouxeste o dinheiro, ou ainda tens de ir à vila? - bafo no cigarro.
- Achas? Tive de deixar o Rafael com alguém, não consegui fazer mais nada... Arranja-me um desses. - gesto de cigarro, com a ponta dos dedos.
(o adiantado da hora, o sol em cadência iminente traduz uma óbvia prolepse na acção.)
«Não consegui tudo.
Quanto tens?
300.
300? Como 300? Eu preciso de 1000, caralho? Mil!
300 e sais da minha vida para sempre. Da minha e da do rafael.»
Ele deita as mãos à cabeça. Ela fuma indiferente.
«Tou fodido. 300 é a minha morte.
Fodi 10 gajos e fiz 4 broches. 300 euros não pagam a minha vergonha. Queres, queres! Não queres, saberei reconhecer o teu corpo aberto na morgue.»
Deita o cigarro ao chão e pisa-o como se calcasse o homem que está, neste momento, à sua frente.
Pausa, esperando uma reacção do homem que esfrega a cabeça entre os dois braço.
"faz como entenderes. Eu já fiz tudo o que podia e não podia fazer por ti. Vou-me." - Costas voltadas para a lagoa.
Tu não percebes, pois não? Estás metida nisto, agora. Olha para mim, caralho! Já sabes como isso me põe a ferver!"
Antes que possa responder, agarra-a pelo cabelo e empurra o corpo contra o carro, aperta-a na nuca, empurra a cabeça contra o capot.
grita, esperneia. Debate-se.
"vais ajudar-me nisto até ao fim, quer queiras quer não. E é já."
Agarra-a pelas calças e pelo cabelo e pelo que calha e atira-a para o banco de trás.
corta para plano estático do carro na contra luz do entardecer, canavial a ondular ao vento.
Sem diálogo, sem voz, a trilha sonora é ocupada pelo vento, passos na terra batida, o ruídos dos estofos de napa.
"ai foda-se."
(os movimentos sucedem-se rápidos em rewind. Recuamos no tempo quatro horas. Ouve-se o som de um disco riscado. Determinados movimentos são registados em câmara lenta, os quais designaremos por CL.)
Saí de casa há duas horas. Não sei se fiz bem, se fiz mal. Conversar com os meus pais não me aliviou lá grande coisa, mas pelo menos disse tudo o que tinha a dizer. Vejo uma mulher correr nervosa em direcção a mim. Vem tão desenfreada que me deu um encontrão (CL) e caiu-lhe um envelope (CL).
Tento chamá-la. Ela vai lá longe. Tento seguí-la, mas perdi o seu rastro na multidão. Ainda seguro o envelope. Abro... tem dinheiro. Céus, um milagre.
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